Uma carta sobre as coisas do teatro

De um lugar qualquer, 27 de março de 2005.

Caro meu,
   Neste dia de outono chuvoso e cinza, faço emergir minha alma de um silêncio profundo. Prolonguei-me na ausência. Por vezes é necessário calar as idéias e pôr-se num estado meditativo. Minha ausência não fora desleixo, mas uma certa ibernação de pensamento. Enfim, volto outra vez ao caminho de onde as vezes penso em escapolir: o teatro. É necessário pensar no teatro. Mas não como fazem os grandes e pequenos mercadores de sonhos. O teatro é uma entidade. Não é um bem ou serviço qualquer que pode ser comprado ou devolvido quando já não se sente mais a necessidade do uso. Nem é desses artigos velhos esquecidos no fundo do armário que, vez ou outra, são recolhidos para se jogar fora. O teatro é uma entidade. Uma necessidade humana como pão e água. Mas, prolongando meu olhar para além do horizonte sinto que já não é mais assim. Andamos em tempos de miséria e fome. Já não sobra pão, já não verte água… Caro meu, não posso pensar em teatro sem pensar na revolução que ele causa na alma da pessoa que o assiste, no seio da sociedade que o abriga… andamos com medo da revolução… andamos com medo, eis tudo… Mas existe sempre a esperança dos loucos…  e ela me veio sorridente e lúdica…

Perdão se escrevo em demasia… rascunho aqui certas idéias que andei meditando nestes dias de arrolbos e silêncios. Andei lendo muita coisa e ouvindo muitos pontos de vista. Concordo com alguns, descordo de outros. Mas há um desejo latente de se dar um passo à frente na questão. Penso que não adianta apenas brigar por pequenas migalhas. Eu sei, ando repetindo minhas próprias palavras… Nem se pode resumir o panorama teatral brasileiro em alguns polos citadinos como São Paulo. Embora em São Paulo haja um movimento teatral organizado e atuante, pelo menos é o que faz transparecer. Mas insisto em dizer que o Brasil é muito grande. E a realidade do Teatro varia dentro dessa imensidão. Então já não posso falar de um teatro, mas de muitos teatros. Como já não posso me referir a gente de teatro como classe, seja artistica ou teatral. Abri meus olhos e vi que isso nada mais é do que falácia. Não há uma única classe, mas muitas. Todas tão distintas, tão heterogêneas que seus quereres não se cruzam nem se coincidem. Não posso resumir em uma classe um universo inteiro de contradições.

Posso falar apenas da minha realidade mais próxima. Uma realidade cruel no que se refere ao teatro. Como bem sabes, moro numa cidade ao sul de Santa Catarina. Cá também temos nossos melancólicos pólos culturais: Florianópolis, Joinville, Blumenau( pelo fato de sediar o festival universitário de teatro), Itajaí, alguma coisa em São Chico e Jaraguá do Sul, muito pouca coisa mesmo… No resto do estado um grande limbo… Cá onde estou não pertence nem à rota.. só um ou outro espetáculo de quando em quando. Embora muitas vezes profundamente desencantada com a labuta dura e diária, ainda sou fiel à idéia de que o movimento teatral deve fazer-se também pelas cidades do interior. Por quê? Para assim também poder ampliar o raio de ação dos grupos, fomentar efetivamente o  teatro, criar um circuito de apresentações - não apenas o circuito dos festivais -, possibilitar a formação de grupos cuja finalidade seja pesquisar novas linguagens, formas e estéticas teatrais,  criar um intercambio entre localidades, criar e cultivar um público de teatro que hoje não existe. Por vezes não existe nem nos grandes centros, que dirá nos pequenos.

Teatro é para o povo. Sem populismo. É preciso pensar não apenas na formação do ator mas também da platéia. Pouco se pensa nesse espectador que é diferente de consumidor. É preciso reavivar a figura do espectador. Pois teatro só acontece do ponto de vista da plátéia: ¨Lugar de onde se vê¨, lembremos da tradução do grego. Pois bem, como querer fazer teatro, se não há uma preocupação com aquele a quem se destina o espetáculo?! Não penso nessa platéia como um mero pagante. Não quero essa platéia morta, que fica estática, quietinha, enfurnada numa poltrona desconfortável, assistindo alienadamente a uma peça de teatro. Quero uma platéia participativa e capaz de permitir-se ser tocada e transformada. Não pretendo uma platéia de seres analfabetos para as coisas de teatro, treinados na linguagem televisiva que sempre espera ver no palco aquilo que aprendeu a ver na TV. E não adianta dizer que teatro é outra linguagem. Que  è algo artesanal não industrial.

As pessoas comuns não sabem - ou não se dão ao trabalho - ler, sentir, ou interagir com um espetáculo, não são íntimas desse universo humano, intenso, avassalador… Por vezes acham em estado de assombro, de susto… Por vezes têm medo do que possam encontrar. Por vezes têm preguiça.È preciso  cultivar o teatro como hábito para que ele vire efetivamente o que realmente é: uma necessidade. Mais do que a própria telenovela. Você já pensou no que aconteceria se um belo dia decretassem o fim desse folhetim? Não vou discutir se novela é importante ou não. Tem seu lugar. Um lugar que deveria ter também o teatro. A novela está no imaginário do brasileiro, da classe A a classe Z. O teatro não habita esse mesmo imaginário. Não é necessário. Embora seja essencial. E por quê? Porque na maioria das vezes não se trata o teatro desse jeito, mesmo a gente de teatro. Não investe na qualidade da platéia que assiste. Não apenas a platéia rica que pode pagar por ingressos caros, mas o público comum… Por isso é tão importante o teatro movimentado também no interior… para formar essa platéia que saiba assistir a um espetáculo e saiba cobrar pela qualidade desse espetáculo.

Um grupo que não veja como impossível a montagem de seus espetáculos, a formação técnica de seus atores, que não pense em leis de incentivo como algo inacessível - pois é o que é, dada a esbornia em que se transformaram essas leis que beneficiam apenas aos ¨mais chegados¨. Um teatro criado pela solidariedade dos próximos, com investimentos de gente da própria localidade. Um investimento não por mera mercantilização, mas por compromisso com a sua realidade local. Há pessoas também no interior com a possibilidade de se transformarem em viabilizadores de espetáculos. Investir na qualificação dos grupos (mesmo amadores), não como alguém que investe seu dinheiro para obter um lucro, mas como alguém que se torna parceiro de um trabalho capaz de transformar a realidade e a vida. É preciso incutir na cabeça a necessidade da parceria, da solidariedade. Não apenas os que podem viabilizar o trabalho, a fomentação, mas entre os próprios grupos existentes. O teatro pode muito bem valorizar mais a criação, a criatividade e a qualidade e menos o valor total do orçamento da produção. É preciso cultivar o campo para que os pequenos tenham também espaço para crescer.  Pois teatro no Brasil ainda é muito caro. Colocar uma montagem de pé não é para qualquer um… E aqueles que trabalham não são apenas amantes, mas trabalhadores. Se é difícil nos grandes centros, que dirá nos pequenos… Minhas palavras soam como utopia… Grandes utopias… mas é preciso ir atrás das solições, caro meu, não apenas ficar parado reclamando. E uma boa opção é esta.

Embora o trabalho seja árduo e de longo prazo. Começar com pequenos movimentos, atuando numa realidade mais próxima, mobilizando as pessoas mesmo que silenciosamente.. um movimento silencioso, mas um movimento vigoroso e transformador. Caro meu, eu não posso mudar o panorama do teatro no Brasil, nem posso mudar o pensamento dos que fazem teatro. Mas eu posso atuar nos que estão mais perto. Posso tentar transformar o meu meio, os do meu convívio. Por mais que seja árduo o esforço.. e por vezes desalentador… mas pense se esse mesmo movimento começar em diferentes cidades interioranas, em diferentes localidades, cada um no seu espaço, ocupando esse espaço, criando e demarcando um território para o teatro, fazendo-se presente.. e depois dando passos adiante, formando platéias, formando circuitos pequenos.. que integram outros circuitos um pouco maiores… e quando ninguém estiver notando o movimento já estará implantado, já estará vivo e sem depender de certos desejos ou poderes maiores… grandes utopias… mas ainda há a esperança dos loucos, caro meu…


Voltando à minha decantada realidade, o que noto é isso. Aqui não se cultiva o hábito do teatro nem a prática do teatro.Há poucos grupos formados. E sua produção não chega ao público local. Se não há teatro, porque haver apoio ao teatro? Aqui trata-se muito como algo ligado a hobby, prazer de fim de semana, arte terapia. As pessoas vão fazer teatro para aprender a falar em público, perder a vergonha e a timidez… nem vou lhe dizer que isso é apenas uma pequena conseqüência do trabalho, não o objetivo principal. Mas já não culpo o público por isso. Sua tendência é seguir uma idéia que está arraigada na tradição cultural. Ou se vê o teatro como ¨o teatrinho¨ feito sem grandes pretenções, ou se vê como produto de um mercado que está além das fronteiras. Um produto caro e distante. O merdado! As vezes damos a ele um poder que de fato não possui. Transformamos o mercado num gigante assustador e temido. As leis do mercado, o poder do mercado, quem não está no mercado está morto… Criam-se tantos mitos e crêem-se em tantas falsas verdades…Há uma vida para além da rota mercantilista. Uma vida fulgurante e animada. A prova disso são trabalhos de grupos comprometidos com a qualidade e a criação. O grande problema  desse ¨mito do mercado¨ é essa tendência em transformar tudo em produto. Uma peça de teatro é um produto a ser vendido, um negócio a dar lucro, uma coisa… Andamos coisificando o teatro. O teatro não é uma coisa, mas uma manifestação. Caro meu, anda tão na moda o termo ¨produto cultural¨ mas penso que não se vai muito a fundo no que isso representa. Coisificar o teatro é dar um poder grande demais a figuras que têm seu lugar, mas não são o centro do trabalho. Um deles é o produtor ( o executivo, o administrador), o outro é a figura do patrocinador. Ambos têm sua importãncia mais do que reconhecida. Mas sinto que seu espaço ultrapassou os limites e agora são eles quem têm o poder de decisão. Não dá para fazer teatro tendo que agradar a certos gostos particulares, encaixar-se em certos pontos de vista limitados… Muitas vezes esses resolvem decidir a favor do mercado, do que pensa-se que é mais aceito ou mais fácil de se vender. Seria muito bom quebrar essa lógica. Fazê-los mais comprometidos com o teatro. É necessária essa função executiva, pessoas com a capacidade de dar suporte e estrutura às idéias criadas dentro dos ensaios. O produtor deve estar a serviço do teatro e não o teatro a serviço dos interesse do produtor. Ou do patrocinador. Investir em teatro é investir em qualidade. Mas a qualidade anda meio esquecida ultimamente.

Li por esses dias que há uma certa indulgência entre certas produções ditas experimentais. Não sei se estou muito de acordo. Experimentar é importante. E permitir-se ao erro também. Muitas vezes são grupos que estão ainda buscando uma definição, uma identidade, precisam acertar o caminho… então não se pode julgar uma estrada por um passo em falso… ai faz falta essa solidariedade, essa generosidade entre as gentes de teatro, de não perdoar um erro alheio.. há muita gente pretenciosa, isso há.. mas há muitas gentes, de muitos tipos.. e generalizar é culpar um pelo defeito do outro…

Mas queria lhe comentar um pouco sobre a questão do descompromisso do poder público. Ainda ando escrevendo em demasia, mas são tantos os pensamentos, caro meu, e a questão do teatro anda ampla e complexa.. tanto que são necessários mais de uma carta para refletirmos juntos sobre tudo isso… Vou novamente falar da minha realidade, como exemplo… Aqui, como deve ser em quase todos os lugares, o caminho da ¨política cultural¨ segue a vontade partidária e não a necessidade da sociedade. Disse que aqui não há um movimento, o que não é de todo verdade. Há pessoas realmente comprometidas, tentando quebrar - ou driblar - o muro petrificado erguido em torno da cultura. Já é sabido que o poder público encara a arte como desnecessidade e entulho. Seja na esfera municipal, estadual ou federal. Muitos são os casos aqui de trabalhos ricos e promissores que foram simplesmente cortados porque trocou-se o partido no comando… ou mudaram-se os interesses. Essa é realmente uma das grandes pedras no caminho. Pois trata de prestar um grande desserviço. Mata o trabalho daqueles que querem fazer um trabalho sério em favor do compádrio. E há ainda o problema dos espaços fechados, dos círculos onde quase ninguém pode entrar… Não sei se é interessante querer dialogar com essa gente… nem sei se é o caso de ceder à bajulação ou ao sistema.. mas é preciso atuar em outras vias, à margem, mas atuar… As vezes como se o poder público não existisse… as vezes tentando achar uma brecha nessa muralha. Essa é uma realidade que não pode ser negada. E tem muito a ver com o verdadeiro valor da arte para aqueles que dirigem os poderes. O teatro não tem espaço! Não tem espaço físico.

Aqui não temos teatro, mas também não temos grupos de teatro que possam ocupar esse espaço. Nas cidades próximas que tem essa arquitetura, a ocupação é feita por tudo, menos por peças de teatro. Felizmente essa arte transforma qualquer espaço físico em espção teatral, mesmo com certo desconforto. Vejo que uma possibilidade de sair de circulo vicioso são outras instituições abrirem também seus campos para o desenvolvimento dessas idéias… Sei que seria pedir demais, mas com um pouco de boa vontade e compromisso instituições como universidades e institutos ampliarem também suas bolsas de pesquisa também para a área teatral - ou artistica. Mesmo as que não têm centros específicos com cursos de arte têm essa possibilidade de abrir espaço e dar suporte à formação de grupos com objetivo de desenvolver uma linguagem… ou mesmo de adquirir uma base teatral firme,  capaz de educar para as coisas de teatro a platéia mais próxima. É preciso ensinar a ler, não só a arte mas o mundo. E de forma crítica. É preciso ensinar a pensar e refletir sobre as coisas. e essas são funções inplícitas no serviço que o teatro presta. Falarei mais sobre estas questões de institutos, bolsas e afins numa outra oportunidade. Como são muitos os assuntos, vamos refletindo aos poucos. por enquanto, caro meu, dou-lhe o pequeno gosto das idéias espalhadas pelo papel. E termino esta carta com a doce esperança dos loucos.. Um louco em especial… Li a Bravo! deste Mês, e recomendo que leia também… Fala lá da reinvenção do teatro. Na capa um Zé Celso risonho e provocador. E nas muitas falas de sua entrevista, uma verdade que sempre ignoramos: ¨O futuro do teatro é o presente, é o presente, é o presente…!¨ Pois é, caro meu, não adianta pensar no que será, se ainda não somos. Não dá pra ficar empurrando tudo com a barriga…

Um grande e fraterno abraço,
 ou Merda! como muitas vezes dizemo-nos nas coxias,

Calorosamente,
Silv!