O Teatro e seu óbvio

Ser ator não é um mistério tão grande quanto o que se possa imaginar. E talvez isso aumente ainda mais o seu fascínio. Há em volta dele uma aura de mistério e encantamento. Sim, a profissão de ator fascina porque, à moda dos bruxos e encantadores, é capaz de criar vidas muito além da sua própria. Como eu já falei, está muito próximo do sacerdote que traveste-se de deus para manifesta-lo aos homens. Entretanto, essa explicação não faz de ninguém um bom ator. Nem tampouco esclarece os vários enigmas óbvios que surgem.

Tenho pra mim depois de algum tempo de palco, e principalmente, depois de algum tempo de direção e ensino observando os atores e alunos, que a resposta aos muitos por quês reside no fato óbvio de dissociar o trabalho do ator da pessoa que o executa. A meu ver parece que conseguem a proeza de partir o sujeito ao meio, criando uma figura à paisana e outra que cumpre o papel de ator. Claro que essa distinção existe pois o foco da vida muda: Ora está voltado para o trabalho, ora para o lazer, ora para a família… Mas da mesma forma que um médico não deixa de ser médico só porque saiu do hospital, um ator não deixa de ser ator só porque está fora do teatro.

Obviedades à parte, isso influi diretamente na formação do ator. Vejo muito um ator ser educado para especializar-se na profissão Para ser capaz de citar conceitos prontos, tirar da cartola algumas técnicas infalíveis que surpreendem o público e assim por diante. Especializar-se na arte de interpretar não é transformar-se num técnico que segue métodos prontos. E aí está a grande e óbvia atrapalhação: quer-se seguir o método proposto por Stanislavski, Brecht, Brook, Boal, Barba… quer-se pegar a experiência desses encenadores e aplicá-la como se fosse uma receita de bolo simples e fácil. Se você caminhar assim será um bom ator, se olhar assado será um bom ator, se fazer um gesto tal será um bom ator… Se todos prestassem realmente atenção em Stanislavski, principalmente nos primeiros capítulos de A Preparação do Ator, veriam que isto tudo já foi visto pelo mestre e condenado por ele. Ficar executando exercícios apenas não é mais do que tentar adquirir muletas para enganar o público… e a si mesmo. São tentativas exteriores que fazem apenas preparar para o fingimento. Há os que fingem bem… mas a grande maioria finge mal e por quê? Porque não observam o óbvio. Receitas de bolo não existem. Stanislavski sabia. Brecht sabia. Qualquer um sabe. O que existe é a conquista de um conhecimento através da experiência. É o chamado conhecimento intuitivo. Esse tipo de conhecimento, distinto do racional e lógico, é próprio dos artistas e de todos os que compreendem a realidade através da criatividade. A aprendizagem por esse tipo de conhecimento vem, como eu disse, através da experiência. Da sua experiência. Parte da capacidade do próprio indivíduo de assimilar e aprender, conquistar respostas criativas a problemas propostos, aprender de tal maneira que o aprendizado torna-se orgânico, manifestando-se espontaneamente quando solicitado. Você realmente aprendeu alguma coisa quando não precisa mais pensar nela, simplesmente sabe. Faz parte da sua experiência de vida. É sua e intransferível. O que normalmente acontece é que não se dá muita atenção a esse tipo de aprendizado. Ele está lá. Mas as fórmulas prontas são mais tentadoras e menos trabalhosas. O que eu observo é a falta de paciência para aprender alguma coisa de fato. E as escolas com seu cronograma apertado ajudam nisso. Executam um exercício, como caminhar pela sala para adquirir a consciência espacial. Caminha-se pela sala. Está se fazendo o exercício. Mas comumente isso não vai adiantar de nada. Dez minutos depois já vão querer trocar de exercício por achar esse muito chato. Na verdade fizeram apenas a exteriorização do exercício. Seguiram o método proposto. Mas esqueceram que isso só não basta. O objetivo é óbvio: adquirir a consciência espacial. E daí? E o que falta, eu pergunto. Falta consciência. Sem consciência não vai saber nunca o por quê de cada exercício por mais que seja óbvio. Aliás, não se é capaz de enxergar nem o óbvio.

Geralmente se pensa que para ser ator basta fazer exercícios, seguir algumas regras e ir para o palco. Mas esquecem o que vem antes. A consciência. Quando não se tem uma consciência clara do que se quer, o foco vai para qualquer lugar, repousa nas futilidades e ilusões do espetáculo. Antes de perguntar o por quê de cada exercício é preciso saber o que lhe move. Voltar os olhos para si para examinar-se com coragem e honestidade. Todo ator deveria se perguntar sempre: o que me move a fazer teatro? Quais são as minhas inquietações? O que eu busco? O que eu quero dizer? E não apenas como artista mas como ser humano. Isto parece bobagem e é por isso que a maioria deixa essas perguntas insignificantes de lado. Mas na verdade elas são o norte. Sabendo essas respostas grande parte dos enigmas do ator são decifrados. E mesmo que a resposta seja pela fama, o sujeito vai Ter mais chances de conseguir o que quer. Ter princípios é mais importante do que conhecer um amontoado de exercícios, todos inúteis pois são estéreis, sem consciência.

O grande óbvio ignorado: é preciso Ter a teoria conjugada com a prática. A experiência abre as portas para a real compreensão do que os grandes encenadores disseram, simplesmente porque eles disseram suas próprias experiências, nada mais do que isso. Por isso é óbvio que um ator “auto didata” sente mais facilidade de aprender as teorias da academia do que aquele que entra querendo apenas aprender através dos livros como se estes fossem a única fonte. Muitos têm os livros de Stanislavski como uma bíblia em tomos que deve ser cultuada e seguida a risca. Na verdade ele deixou registrado um guia, um norte, registros do que deu certo e do que deu errado no seu trabalho dentro do contexto do seu teatro. Foi uma grande conquista e um grande avanço, sem dúvida. Mas é um erro pensar no método de Stanislavski como um método fechado. Na verdade ele é um método aberto. E o gênio do encenador já dizia isso. O problema é que cristalizaram as idéias do mestre transformando-a em receitas de bolo. Acabaram repetindo os mesmo erros de seus alunos de Moscou. O método de Stanislavski está aberto porque é vivo e continuo… há muitas coisas para serem descobertas, outras para serem atualizadas… há coisas em que o encenador russo não pensou, não teve tempo, por isso ele próprio abriu a porta para que cada um prosseguisse com o seu trabalho. Que usasse o seu método como um meio de dar um passo a frente, e não um fim que imobiliza-se o ator num amontoado de regras óbvias. E isso só é conseguido com a experiência, com a experimentação.

Se o ator que teve preguiça de continuar o exercício de consciência do espaço tivesse continuado, se ele tivesse paciência para realmente aprender, ele perceberia a dinâmica, o tempo, a fluidez do espaço, de si mesmo, dos outros.. estaria integrado com aquela experiência. Seria uma experiência presente, sagrada, consciente… a consciência se abriria de forma profunda e verdadeira. Infelizmente, o modo de vida do ator não pode ser anulado. É por isso que eu digo que a pessoa não pode se apartar do ator. No conhecimento lógico, na tecnificação do ator isso é possível. Não sem um grande prejuízo. Antes do ator vem o indivíduo. E a consciência disso faz com que se trabalhe na causa de muitos problemas em cena como a ansiedade, a falta de atenção, a capacidade de jogo, o ego, o estrelismo… só pra citar algumas coisas óbvias.. é preciso pensar em conjunto. O teatro como uma escola de gente.
Atuar é antes de tudo um ato crítico. É preciso ser presente, ser uno. Para poder atuar.. o ator não é o centro das atenções, não no sentido egoístico… o seu centro de atenção só é válido se for capaz de mobilizar a ação. É ele propagador de idéias e emoções. Mas o modo de pensar mecanicista, tecnicista, lógico está tão arraigado que levamos isso tudo para o trabalho do ator. As convicções não são legitimas.. ou melhor, são legitimadas por um modo de pensar que estabelece a fama e a celebridade como bens de sucesso… e consumo… a sociedade é pop. E isso tudo é óbvio.

Os atores quando chegam na cena esquecem tudo o que aprenderam simplesmente porque não aprenderam nada. Nunca estiveram presentes no exercício. Nunca encararam esse trabalho como uma conquista pessoal de experiência, de consciência. Alguns tem uma arrogância íntima achando-se talentosos o bastante para não precisarem de tais práticas. Para quê ficar caminhando numa sala para adquirir a consciência do espaço. O que eu vou ganhar com isso, no que isso vai me servir na cena? Obviamente nunca pensaram que Ter a consciência do espaço colabora para que a cena fique mais limpa, para que a dinâmica do jogo seja melhor aproveitado, para que não haja os inevitáveis buracos no meio da cena, o espaço pesando para um lado e para o outro, a fluidez da cena possibilita um desenrolar que envolve o público ao invés de cansa-lo… os atores novatos se trombam e se encobrem no palco porque não tem consciência do espaço em que atuam. E mudando de espaço físico não são capazes de reconstruir o espaço teatral e se adaptar às novas condições físicas simplesmente porque quando tiveram que experenciar o espaço ficaram com preguiça. Não importa quanto tempo um exercício leve ou quantas vezes precise ser repetido.. e sempre se precisa repeti-lo pois cada vez é uma experiência nova, dinâmica, abre para possibilidades ainda não percebidas… mas existe a preguiça, a praticidade, as receitas de bolo, os métodos prontos… diretores se vangloriando de com quem trabalharam… alguns se prendem de tal maneira a isso que repetem incansavelmente os pensamentos velhos de seus mestres. Em vez de fazerem seus próprios caminhos, adquirirem suas próprias verdades ficam repetindo verdades alheias… é fácil se perder assim.. há quem se encante com pessoas que citam que conheceram fulano e sicrano… e é maravilhoso poder Ter grandes mestres… Desde que não se use isso para trazerem pra si o brilho que de fato não é seu. São mais parasitas de pensamentos cristalizados que charlatães. E ninguém sabe o que fazer porque ninguém sabe o que lhe move, quais suas reais inquietações diante do mundo, da vida, de si mesmo, do próprio teatro. Apenas abrem a boca e engolem qualquer coisa sem questionar… ninguém faz teatro de ouvir falar. Se faz teatro vivendo teatro.. e isso é óbvio.

Há tantos óbvios renegados… a conversa é longa… Respostas prontas são óbvias. E elas não servem muito para o ofício. Mas o óbvio que realmente é indispensável à profissão é a verdade de cada ator que move sua certeza de porquê está no palco. Alguns enxergam. A maioria escolhe a pavonice, aparecer nas revistas de fofoca, dar autógrafos.. isso é óbvio. Mesmo assim é triste. Infelizmente o mundo é pop.