Pra que Negar?

Para ler esse artigo, é preciso uma trilha musical. Então, vejamos o que vai ser: um bolero, um axé, um pagode, uma lambada...? Não, nada disso. A trilha musical não deve ser uma trilha musical qualquer. Deve ser uma trilha musical de presença. E para dar aquele toque de “eu sou o dono da cocada preta”, imagine que está na reta final de uma maratona. Agora, coragem, rapaz. Nesse artigo, tudo é possível. Mesmo não estando em forma, eu quebro o teu galho. E, com a tua pança de chope, eu te coloco em primeiro lugar. Atrás dos teus passos, somente o vento. Cornetas estridentes, por favor. Está bem melhor. Não se atreva em terminar essa maratona ao som do Bonde do Tigrão. Tem de ser uma música encorajadora. Daquelas que tiram lágrima de pedra. Ou melhor ainda. Tiram lágrima de sogra em sepultamento de genro. Pois bem, foi fácil mentalizar essa cena com a música, não foi? Não??? Tudo bem, vamos tentar outra vez. Aproveita, que hoje eu estou com paciência. Onde estávamos mesmo? Sim, você correndo a poucos centímetros de se dar bem. A tal música sublime se mostrou tão difícil de encontrar, que já não é nem tão importante assim. Corre mesmo ao som de Florentina, do Tiririca. O que importa é que você está quase chegando lá, o público aplaudindo, a fama finalmente aparecendo e agora dá um break. Isso, pára tudo. Respira fundo. Concentração! Concentração! Beleza. Agora fica roxo, dá um ataque cardíaco e morre.

Com esse final generoso, espero que as prezadas leitoras compreendam por que botei minha cobaia no masculino. E se você esperava vencer uma maratona ridícula dessas, sinceramente me deixou decepcionado. Na verdade, isso não tem nada a ver com uma propaganda de banco insuportável que passava a cada cinco minutos na tv, durante as olimpíadas. E que eu detestava. Não, não tem. Af! Pra que negar? Tem, tem, sim. Mas finalmente as olimpíadas acabaram. E esse foi o jeitinho que encontrei de exorcizar aquela pieguice da minha cabeça. Matando o corredor com cara de pomba-lesa que ia rumo ao sucesso, só porque era cliente de um banco. No mais, essa questão de ter que encontrar a felicidade a torto e a direito, até abrindo conta bancária, é um tema muito interessante.

Existe uma ditadura da felicidade. A negação do sofrimento como parte inevitável da vida. O que gera mais infelicidade, pela frustração de não estar sempre feliz. Também pudera, ninguém agüenta o peso de um mundo cor-de-rosa, que é maquiado, para ser melhor digerido. E se você não acredita em mim, vou logo alertando. NÃO LEIA O TRECHO SEGUINTE DESTE ARTIGO!!!! Pena que não deu pra colocar as letras piscando. E o sinal de alerta, para quem tem o coração de manteiga, pudesse ser ainda mais chamativo. Mas infelizmente, você vai continuar lendo. Ah, vai sim! Sei que vai. A sua curiosidade é demais para se contentar apenas com os primeiros parágrafos. Ah, Humanidade bisbilhoteira! Não mesmo agüenta um suspense. É inevitável que você leia, não é? Só não vai dizer depois que eu não avisei.

A intenção aqui é questionar o conceito que temos sobre os outros, sobre nós mesmos e a sua influência na concepção de personagens. Nada muito aprofundado, já que hoje ainda tenho que fazer a barba. E esse questionamento pode ser um tanto, como é que vou dizer?, um tanto... desagradável. Muitos vivem numa bolha de idealismo. Se for o seu caso, vai ser perfeitamente compreensível não concordar comigo e desejar me conhecer de perto, para poder jogar um tijolo. Saiba que eu entenderia, até porque seria muito azar da minha parte, no meio de quase 200.000.000 de brasileiros, eu topar contigo na rua, você acabar me reconhecendo e ainda por cima ter um tijolo por perto dando bandeja.

O que se costuma seguir é a Lei do Menor Esforço. Quem está em pé senta. Quem pisa na lama bota um sapato. Quem não tem uma boa revista de fofoca lê esse artigo. E essa tendência é usada também para formularmos nossos pontos de vista. Geralmente as pessoas são classificadas em boas ou más, sem meios termos. É como ter uma listinha azul e outra negra em que botamos todo mundo. Ninguém fica fora delas. Por trás disso, há uma maneira maniqueísta de ver os outros. Uma maneira fácil e conveniente, que não requer o esforço e as descobertas nem sempre consoladoras da reflexão. Basta pôr logo um carimbo de bom ou perverso e pronto, a criatura foi taxada. Mas aí é que a porca torce o rabo. Não existe ser humano completamente bom ou mau. Existem sim, os que são muito bons e os muito maus. E que são uma minoria, já que provavelmente você é como eu. Integrante da maioria capaz de fazer suas boas ações e maldadezinhas básicas.

Sob a ótica maniqueísta, o mundo é mais pobre. Vira uma mera redundância. Maniqueísmo é a ação de rotular. Preconceitos encontram terreno fértil neste meio. O espírito humano é muito mais complexo. No teatro, os grandes dramas transcendem o maniqueísmo e apresentam personagens versáteis. Ricos em variados sentimentos, que transitam entre o lado luminoso e sombrio da alma. Aquilo que parece simples é exatamente o contrário. Um dramaturgo sabe da dificuldade de compor um personagem tocante. Aquele que vem a suscitar emoções fortes no espectador e torna-se inesquecível, sendo admirando ou detestado. E me pergunte por que. A resposta agora é fácil. O dramaturgo não consegue atribuir ao personagem uma emoção com verossimilhança, se não por ele, o dramaturgo, nunca foi sentida. Fala com propriedade do ódio quem já odiou intensamente. Do amor, quem já o teve aflorado dentro de si. E, por conseguinte, da dor, da alegria, da inveja, da solidariedade e dos diversos outros sentimentos que, para um bom observador, apresentam-se mesclados.

Um entrave para a elaboração de personagens marcantes é essa teimosia em sermos utópicos. Sim, somos utópicos incorrigíveis. Utópicos até o tutano. E mesmo jurando não ser, somos. Um dos mais nobres esforços do homem é a busca por um mundo melhor. Mas, convenhamos, existem mundos impossíveis de ser atingidos. Quer saber de um deles? O mundo de paz, amor e justiça é uma balela. E agora você deve ter ficado mesmo uma arara com essa minha afirmação pessimista, não foi? Que coisa horrorosa! Se tivesse acabo de almoçar, teria uma indigestão! Como um sujeito pode dizer uma coisa dessas?! Afinal, desde criancinha, a gente cresce perseguindo esse nobre ideal. E agora ele está sendo contestado. Meu castelo de convicções foi abalado e corre o perigo de desabar. Pois bem, agora me diz se não dá uma vontadezinha irresistível de dizer que estou cabalmente errado? Dá, não dá? Então, beleza. Esse artigo é mesmo democrático e você não precisa concordar comigo.

Um mundo de paz, amor e justiça não é possível, porque seria um mundo perfeito habitado por pessoas imperfeitas. Agora que você está sozinho, tête-à-tête comigo, confesse de uma vez por todas que não é aquela pessoa maravilhosa, que afirma ser, quando alguém lhe pede pra falar de si mesmo. “Ai, pessoal, eu sou tão amigo, companheiro, fofo, atencioso, compreensivo e...”. Af! Nessas horas, ao ouvir um comentário desses, eu juro que tenho vontade de vomitar. Onde foi parar o ciumento, o intolerante, o dono da verdade, o egoísta, etc, etc e etc? Está debaixo do tapete, não é mesmo? E nesse momento assoma algo medonho que a gente chama de “politicamente correto”. Um sério trava-olho para o dramaturgo.

O “politicamente correto” é um demérito para a Dramaturgia. Algo semelhante a uma deliciosa torta de óleo de rícino. Bonita por fora, mas com um conteúdo xexelento, que exclui aquilo que os mais recentes donos da verdade não acham adequado. Numa tentativa de impor um moralismo asséptico demais para natureza humana. O bom drama e o “politicamente correto” não se combinam. São como água e azeite, pimenta e rapadura ou Djavan e Tati Quebra Barraco. Na defesa, muitas vezes inconsciente de um mundo estereotipado, cai-se na armadilha da auto-censura. Personagens insossos, tão verdadeiros quanto uma nota de três reais, são talhados, apelando pro Maniqueísmo e abordando superficialmente a natureza humana, reduzida a extremos de bondade e maldade. Interessante abrir os olhos e ver algo a mais que o preto no branco. Uma diversidade de cores, que é fonte inesgotável de emoções, sentimentos e personalidades, que surpreendem e tocam o espectador. Vamos escancarar o que achamos bom, mas também o que elegemos condenável nos outros e em nós mesmos. Pra que negar? Assumir que não somos criaturas infalíveis não é fácil, pois acaba melindrando o orgulho. Porém é uma atitude libertadora que nos torna mais conscientes do que somos e pode nos levar não a um mundo perfeito, mas efetivamente a um mundo melhor.