O teatro e o futebol

  • Imprimir

Bertold Brecht sentia uma imensa angústia pelo fato do teatro, em seu século XX, não ter o mesmo vigor que o futebol. Assim ele afirmou certa vez: "o futebol é a mais fecunda forma de arte do século XX". É claro que, discordando de Brecht, não creio que futebol seja arte, mas o futebol tem algo a ensinar ao teatro. Já que o Brasil lidera os apaixonados pelo esporte, isso se intensifica ainda mais nesse país.

Berthold Bretch

Quando vejo aquela massa de gente nas arquibancadas, minha mente passeia pelo tempo e vai vislumbrar a Grécia antiga e seu povo assistindo as batalhas e as apresentações teatrais durante todos os dias e durante todo o mês, aquelas peças longuíssimas, com monólogos poéticos e ações violentas, enquanto a platéia comia, bebia, gritava, reagia. Era a cartase! Hoje, contudo, a cartase está mais nas arquibancadas do Brasil do que nas cadeiras dos teatros brasileiros.  E isso faz com que o ator siga sua rotina, sem nada de especial.

Até mesmo por motivos éticos, o público de teatro muitas vezes não tem a coragem de se levantar e gritar para os atores como na Grécia antiga. Mas isso seria maravilhoso! Creio que o verdadeiro valor do teatro é provocar alguma impressão que faça com que a gente sinta raiva, ódio, emoção à flor da pele, que nos faça levantar e gritar com os atores!  Infelizmente, isso nos lembra ser selvagem. De fato, nossa sociedade é comedida e isto não é nenhum defeito: os atores ingleses são mais concentrados e disciplinados que os brasileiros (que, por serem latino-americanos e tropicais, são capazes de quebrar um pescoço em cena). Sendo assim, há maravilhosos atores da Inglaterra e de toda a Europa. Há também maravilhosos atores no Brasil.

Eu queria ser mais claro. Eu queria ligar a televisão e ver o público de teatro tão entusiasmado quanto o público de futebol, e até mais. Eu queria que acabasse a burguesia, que o teatro também fosse visto nas ruas (de onde se originou e onde é seu verdadeiro palco). Como isso não é possível, me resta ver todos os benefícios que esse sistema (o de levar o teatro para grandes edifícios, onde só têm acessos os mais ricos)  nos apresenta. Ter um certo glamour em cena é algo que conferiu ao teatro um valor artístico de riqueza. Mas isso não basta, o teatro é muito mais (e precisa de muito mais).

O personagem Cláudio, de

Eu e Bertold Brecht queremos que a cartase mude a nossa vida, e a vida da nossa sociedade! Nós queremos que o futebol nos dê todo seu vigor. Leiam bem o que vou escrever agora: se esse vigor for acrescido novamente (novamente porque já existia, como eu disse, na Grécia antiga) ao teatro, aí haverá uma experiência única. Aí o teatro cumprirá seu papel. Esse papel não é só o do mero divertimento: é preciso que aprendamos algo comHamlet. Acho que, ao contrário do esporte nos estádios, se houver esse vigor nos teatros haverá uma única causa que vai estimular toda a gente e, ao contrário do futebol, não vai haver brigas entre inimigos e times (porque isto não existirá). Existirá, isto sim, uma idéia que vai unir o público para o aprendizado.

Já que o parágrafo acima deixa muitas brechas, quero finalizar esse meu primeiro artigo apontando algumas aprendizagens que poderíamos retirar de determinada peça. É sensato eu pegar uma peça que foi encenada recentemente nos palcos brasileiros. Vamos pegar A Alma Boa de Setsuan,  do próprio Brecht, encenada por Denise Fraga. Resumindo, a peça conta sobre uma cidade chinesa, Setsuan, que é visitada por três deuses (na versão de Fraga, apenas um)  com o objetivo de procurar uma alma boa. Eles encontram uma chinesinha (interpretada pela Denise), que lhes dá abrigo. Pronto! Eles encontraram a alma boa! Pagaram a anfitriã e foram embora. A anfitriã era prostituta, mas com o dinheiro pôde abrir um negócio e dar a volta por cima. Com o dinheiro do negócio, também achou possível beneficiar seus vizinhos. Eis que aqui mora o clímax da peça: os vizinhos começam a abusar da chinesinha e ela, cansada, decide se fantasiar de um suposto primo que chegou para cuidar de seu negócio. A partir daí a história é previsível: o "primo" tem um comportamento totalmente ao contrário do dela (ele é bravo e só dá as coisas se trabalharem pra ele).

Brecht é tão atual! Ele está representando aqui nosso lado bonzinho, nosso lado que dá tudo, faz tudo, está sempre disposto a se ajoelhar pelos outros. Sob minha ótica é, sobretudo, um lado egoísta: eu te trato bem visando o que você me dará em troca. Se identificou? Ou identificou alguém próximo? Se você não me der o que eu quero, eu vou ficar emburrado e colocar a culpa em você. A história é sempre a mesma: "Mas eu te tratei tão bem e você veio com quatro pedras nas mãos..." Esse é o dilema de todos nós, e acho que do planeta inteiro. As vítimas são freqüentes nos programas televisos. Mas esse papo dá um outro artigo. Por enquanto, fico com esse sentimento de vislumbramento ao sentir a verdade do teatro, essa verdade que nos permite aprender coisas para as nossas próprias vidas!

Quando o público de teatro tem esse tipo de sentimento, acrescido ao da catarse, e mais ao do vigor típico das arquibancadas de futebol, aí temos o que eu chamo de arte.

O vigor de uma torcida brasileira.