REFLEXÕES SOBRE A ARTE DE ATUAR

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COELHO DE MORAES

A experiência com artistas / atrizes / atores indica que pouco adianta adaptar-se de modo submisso ao mundo socialmente construído por terceiros adultos (quando aportamos no mundo ele já está pronto e quando tomamos ciência de que o estamos formando, - se é que chegamos a tomar esta ciência, - já é tarde. Ou desfrutamos ou nos frustramos com o mundo.  O desfrute de viver é pessoal e a observação de quem nem todos desfrutam tem que ser óbvia.  Dessa forma algumas pessoas forçam a aparição de nova realidade via esquizofrenia ou fazendo arte.

O brincar criativo (ludus)  é um modo de se enfrentar a realidade, de  valorizar a alegria de estar vivo mesmo frente a mundo estranho. Frente ao cansaço da sujeição, o brincar com a realidade se apresenta como a possibilidade de criar, de colocar o tom pessoal na experiência, de rearranjar campos. O brincar com a realidade é construir novas realidades, ou, no mínimo, executar novas leituras sobre a realidade media.  Não apenas desmontar a pretensão narcísica, mas impregnar a realidade com o desejo. A submissão poderá nos transformar em normopáticos – as pessoas do quotidiano que acietam as coisas como que naturais - normopáticos marcados por defesas frente às próprias possibilidades, não ousam em pensamentos , nem em palavras e muito menos obras.  Fogem pela vida do medo que visa a  minimização dos riscos que se corre na realidade. Realidade ornada de acasos, e, eivada de riscos improváveis. A realidade não será só tema de sujeição, mas, de criação.

A atriz e o ator são os que se mostram munidos de segurança;  tão firme segurança que impossibilita o acolhimento radical da loucura. Domina-se a nova realidade sem ser invadido por ela. Não sendo assim  não se é atriz ou ator, mas se é louco. Deve-se se abster do autoritarismo e da doutrinação e permitir a fruição, mesmo que aparentemente,  desorganizada da obra que se quer representar ou viver no momento, ou seja, a peça.  O ator e equipe se entregam ao que está acontecendo naquele momento e naquele momento o que está acontecendo é vida e realidade, com ou sem platéia.  A obra que se interpreta – ou que se vive no momento -  é experiência para o ator e para a direção/equipe. Se não for possível experimentar este estado de relaxamento, esta condição de aprendizado ativamente passiva, ativamente expectante, de fato não há aprendizado algum, nem interpretação de nada, nem de vivência de coisa nenhuma.

A atriz/ator, freqüentemente em silêncio, o artista não deve oferecer nem força, nem interpretação alguma, nem forçar poses ou gestos, mas viver o momento daquilo que se quer suposto  representar. Não fazer de caso pensado é ser natural e se quer assim no palco.

A Interpretação será aquilo que a platéia captar, de acordo com seus valores e conteúdos próprios, trazendo para si o valor que souber captar. Sempre dependeremos da inteligência da platéia. Não há como prever reações, a não ser que a platéia seja previsível, portanto, tola. A recompensa por esta retenção de interpretação é o fato de que o ator faz possível interpretação que se pensara da obra, reciclada, então,  pela platéia. Neste caso, a direção/equipe deve trabalhar pela não-ação e pela espera, evitar qualquer atropelamento do ritmo da atriz/ator. O processo não é apenas ativo, não acontece apenas agindo. A ação, aliás, é marca da vida contemporânea - marca não rara ensandecida – e lembrar que ação é drama. Onde houver movimento há drama. Onde houver vida há drama; vida não no sentido ZOE, mas no sentido de pulsação.

O aprendizado vem também com o silenciar, - que não significa parar, -  para ouvir/ouvir-se, deixando passar, deixando estar (let it be), deixando fluir,  permitindo que atriz/ator se desarranjem, se desorganizem, para dos pedaços reerguerem a nave, o casebre, o palácio.  A personagem verdadeira – não uma específica ou certa personagem, mas, a que surgirá dos véus, quase que por si - se constrói aí onde não é tão necessária a defesa. É apenas em estado não integrado que o criativo pode aparecer, emergir. Onde houver densidade o movimento é pífio. Onde houver fluidez pode haver vida.

Ensaios são espaços de desfrute, espaço lúdico, prazeroso; quem faz teatro deve ir aos ensaio para sentir gozos.  Espaço que será partilhado por diretor/equipe/atriz/ator. espaço que invade o mundo interno de todos sem que se tenha consciência plena do que está ocorrendo. Portanto a falta de pudor é condição essencial. Quem tem vergonha ou preconceito deve cair fora desse recinto. Não há necessidade de dizer: “isso é assim”, pois pode não ser. Este espaço é terapêutico, no sentido em que multiplica as possibilidades de vida (drama) de todos,  porque o diretor/equipe não são objeto externo a atriz/ator - o que traria pouco impacto sobre estes -, tampouco são objetos de seu espaço interno - o que seria apenas a experiência com o mesmo. Um olhar em volta do umbigo.

Brincar e criar e atuar e criar a nova realidade, -  mesmo que momentânea realidade que dure hora e meia, - , são, sobretudo, um modo de o diretor/equipe se posicionar diante da atriz/ator, esperando que estes  mesmos possas brincar e criar com e através de seus conteúdos particulares, aprender com estes conteúdos, e, a partir deste conteúdo. Neste caso, não haverá recusa da condição prática humana, do empirismo humano, recusa marcada pelo comportamento defensivo. Diretor/equipe aceitam o conteúdo da atriz/ator, já que  escolheram a estes para o trabalho, aceitam o caos, e esperam, pacientes, o brincar criativo. Não se busca coerência onde não existe coerência, nada se  organiza precipitadamente, nada se organiza do nada. Parte-se de bases ou de proposição de bases. A vivência desprotegida da obra que se quer interpretar ou vivenciar, partindo da obra sem preconceitos ou julgamentos, obra pensada próxima ao brincar, promove o encontro com o  outro e promove o encontro de si mesmo consigo, do ser atriz/ator em verdade, forjando a nova e fluida e momentânea realidade.

Realidade que amanhã será mudada mesmo que a peça seja a mesma.