Em Extinção

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Bem, não quero te assombrar, mas tenho uma notícia um pouco desagradável. O mundo está acabando. É o aquecimento global, enlouquecimento do clima, minha avó botando silicone. O fim. Confesso que sempre esperei o mundo perder o prazo de validade em grande estilo. Aquela história dos Cavaleiros do Apocalipse coisa e tal. Sem falar nos céus se abrindo, trombetas tocando. Dava até para armar uma gandaia. Mas, não. O fim do mundo vai ser melancólico, porque insistem em tocar fogo demais no petróleo e carvão. Que deprimente! Nem vai ter lugar pra purpurina. Vai ser um fim tedioso e sem cores, em meio a um céu acinzentado de fumaça.

A verdade é que o mundo vai se acabando aos poucos. Os animais e as plantas entram em extinção. E as coisas boas vão desaparecendo. Sim, as coisas boas, porque a barata, o vírus da gripe e o mosquito da dengue serão as últimas criaturas a desaparecer da face da Terra. No mais, o Ibama publicou seu livro vermelho das espécies brasileiras em risco de desaparecer. Não tenho certeza se o livro era vermelho ou preto ou de outra cor qualquer, mas a cor em questão é irrelevante. Na capa, aparece um macaquinho bem assustado. Talvez com medo de que a lente do fotógrafo seja a mira de um rifle. Dentro daquele volumoso monte de páginas, também se encontram o tamanduá-bandeira, a onça pintada e outras milhares de espécies que as futuras geração provavelmente só irão conhecer por imagens. É grande a lista do Ibama, mas, com o devido respeito, está incompleta. Há uma ausência imperdoável. Não foi incluído na lista dos que estão a um passo da extinção um bicho que quase ninguém mais vê.  O dramaturgo brasileiro.

Comparável ao ET de Varginha, o dramaturgo brasileiro só é visto por pouquíssimos curiosos. Aqueles que se preocupam de fato em bisbilhotar a autoria da peça teatral. É um bicho raríssimo. Não morde, mas aconselho a não vacilar. Tenha cuidado. Topando com um deles que esteja estressado, faça o sinal da cruz e jogue água benta. Às vezes funciona. Não funcionando, ligue pro Vaticano e solicite de uma vez um exorcista. É que tem muito dramaturgo brasileiro que está possesso. Possesso de raiva. E a explicação para esse comportamento reside no fato de que ele é vítima de uma grande injustiça. Cabe ao dramaturgo escrever a peça e torrar seus neurônios na composição da trama. Um trabalho cerebral que, acima de tudo, exige criatividade. Mas numa cultura como a nossa, em que copiar tem o mesmo status de criar, sem a devida valorização do autor, o dramaturgo simplesmente é ignorado. Cada vez menos, ele tem o seu mérito de criação reconhecido. Esse problema se estende a toda arte, quando ela se torna um espetáculo midiático que exige o enfoque único de celebridades para subsistir. E ao acontecer isso, a arte deixa de ser arte e vira um produto. Como todo produto, tem por objetivo maior ser vendido, podendo prescindir da qualidade e, mais ainda, da autoria de quem o criou. Afinal, em nosso imaginário, produtos são feitos por máquinas e não, por pessoas.

O dramaturgo na maioria das vezes não está na linha de frente para mostrar ao público o seu trabalho. Ele escreve e passa adiante. Sua tarefa é discreta. Não solta rojões ao concluir uma linha ou terminar um parágrafo. Ocorre então que aquele que dirige e o que atua em sua peça são os que costumam colher os maiores louros do sucesso. Não sou contra o diretor angariar a sua parcela de reconhecimento pela forma com que arquitetou o espetáculo. Há seu toque pessoal ao apresentar sua visão da obra. Nem que os atores sejam elogiados pela competência com que deram vida aos personagens. Mas convenhamos que o dramaturgo é relegado a segundo, terceiro, quarto,... enésimo plano. Tem muita propaganda de peça que nem faz referência à autoria. Certamente, o script deve ter caído do céu. E se fazem menção ao dramaturgo, ele é “o sujeito que escreveu o texto”. Daí já decorre uma desqualificação do seu ofício. O dramaturgo escreve mesmo só “texto”?!  Ora, escrever a promoção do papel higiênico no supermercado é escrever um texto, intrometer-se na vida alheia numa revista de fofoca é escrever um texto, assinar um cheque no posto de gasolina é escrever um texto. Não, o dramaturgo não escreve um “texto”. Ele escreve arte. A-R-T- E... ARTE!

Somando a essa problemática uma valorização excessiva, que beira um puxa-saquismo provinciano, de qualquer dramaturgo estrangeiro para dar um ar “cult” ao espetáculo, em detrimento dos autores nacionais, principalmente os iniciantes, o dramaturgo brasileiro está em maus lençóis. Não, lençol é muita regalia. Colchão também. O dramaturgo brasileiro só tem mesmo cama de faquir, aquela cheia de pregos pontiagudos, para comer o pão que o diabo amassou (sem direito à manteiga!) e adormecer no anonimato.

Até quando não vamos valorizar a nossa genuína cultura de maneira efetiva? Até quando encenar exaustivamente clássicos vai servir de desculpa para se esconder convenientemente à sombra da reputação de uma obra e não dar espaço ao novo? Renovação é uma palavra de ordem contra a estagnação. Como estimular o surgimento de bons autores teatrais, se previamente santo de casa não faz milagre? O dramaturgo iniciante tem seus textos recusados, sem ao menos serem lidos. Triste, mas o que ocorre é algo que se vê mais explícito na Literatura. Existe uma grife do sucesso, baseada numa estratégia mercadológica de exclusão. Talento apenas não basta. Mais do que nunca, um autor de sucesso se “constrói” com marketing, ajudado pela incapacidade cada vez maior do público de diferenciar qualidade de mediocridade, precisando se convencido por terceiros do valor de uma peça. Inserido nesse contexto, o novato autor de peças teatrais deixa de ser invisível, se elogiado por alguma sumidade do meio artístico ou cair nas graças da mídia. Já o veterano faz das tripas coração, para não cair no esquecimento. E quem perde também somos eu, você e a nossa dramaturgia por toda mente perspicaz que não conseguiu seu lugar ao sol.

Iniciativas como a do Oficina de Teatro, que oferece um banco de peças em que o requisito principal para a inclusão da obra é a sua qualidade, são muito importantes para o enriquecimento do nosso teatro com prata da casa. Uma oportunidade de divulgação para os que estão começando e para os que já têm um caminho percorrido. Além de fonte de pesquisa, pois desfrutar a leitura de peças teatrais sempre foi uma dificuldade.

Enfim, a situação do dramaturgo brasileiro é periclitante (acho esta palavra tão chique! Eu periclito, tu periclitas, ele...). E só com a devida valorização, que em primeiro lugar deve ser exigida por nós mesmos, dramaturgos, é que poderemos um dia viver com dignidade da nossa profissão neste país. Melhor lutar do que se conformar. Ou gerações futuras somente irão nos ver empalhados em museus, como espécimes extintas de um passado que foi incapaz de legar um patrimônio artístico humano para o futuro.