Final da década de 80. Mais uma das muitas greves dos operários metalúrgicos de São Paulo era o assunto do dia. Cobertura ampla nos jornais , revistas, rádios e televisão. O Brasil vivia um delicado momento de transição política. A ditadura chegava nos seus estertores e o estabelecimento de um governo civil, eleito pelas urnas, estava sendo negociada entre parlamentares e militares.
As greves iriam impedir que as negociações progredissem e, pior, inviabilizariam de vez um acordo entre militares e civis favorável à transição, diziam alguns. Já outros afirmavam que as greves iriam acirrar os debates e conduziriam à um estado democrático fortalecido, uma vez que conquistado pela pressão popular e não concedido através de um acordo político inconsistente.
De qualquer modo o assunto estava presente em todos os cantos do país e alcançava repercussão mundial. Um grupo de professores de teatro de uma conceituada escola paulistana, sugeriu aos alunos, que já cursavam o quarto e último ano do curso, a realização de uma série de work-shops de dramaturgia e interpretação que abordasse o tema da transição política e das greves. Surpresa : a quase totalidade dos alunos, próximos à sua formação de atores profissionais, não possuía um nível de informação sobre o tema que possibilitasse sequer iniciar o processo de trabalho. Conheciam bem Stanislaviski e seu trabalho frente ao Teatro de Moscou, as experiências de Grotowsky com seu Teatro Essencial, o teatro pictórico/imagético de Bob Wilson, conheciam todas as tendências da pop arte no mundo, debatiam Artaud, Wilhelm Reich, Lacan e o simbolismo junguiano. Só não sabiam do que acontecia no entorno de si próprios. Não tinham informações sobre o que ocorria em seu país. Desconheciam a própria cidade em que moravam.
Pode um ator não conhecer o seu próprio meio social? Como tratar de temas universais nesse caso? Pode um ator desconhecer a si mesmo? Como tratar sobre a existência humana então? Pode um ator ignorar a realidade que o cerca cotidianamente? Permanecer alheio à extrema algazarra da vida pulsando ao seu redor? Não se dar conta da imensurável força que brota infalivelmente todas as manhãs e que faz a roda da história girar?
Claro que conhecer e estudar Stanislaviski e os outros mestres e movimentos acima citados e os não citados é importante. Aliás, é mais do que importante : é fundamental na formação do ator.
Porém, um ator, ou em última análise qualquer artista, que não se apercebe do mundo que está cotidianamente ao seu redor, que não conhece sua gente, sua história, sua cultura e nem ao menos a sua própria cidade é algo que transcende ao absurdo.
É fato que o ator precisa sim estudar sempre, permanentemente. Já ouvi isso de diretores e de atores reconhecidamente talentosos. Deve ouvir, observar, ler, deixar-se impregnar de informações, como se fosse uma esponja. Não no sentido de buscar pura e simplesmente um status de erudição. Não somente na expectativa se vir a ser um analista político, um intelectual. Mas sim no sentido de embebedar-se de conhecimento. De todo e qualquer conhecimento. De alimentar e enriquecer constantemente seu repertório gestual, emocional e sensitivo, de tal modo que sua intuição ecoe sempre que necessário, sempre que despertada, junto à sua imaginação. A tão decantada imaginação prodigiosa do ator.
Para um artista que extrai seu mote de vida e sua arte da sua capacidade de observar, absorver e apreender o mundo e as gentes, isolar-se num mundinho particular confortável é a morte. Morte metafísica, claro, mas morte.
Convenhamos, no caso dos nossos candidatos a atores e atrizes aqui citados : algo acontecendo em uma cidade. Um acontecimento político/social de tal magnitude ao ponto de ter repercussão planetária, é um fato grande demais para não ser percebido.
Principalmente por quem vive e mora na tal cidade, no olho do furacão.
Principalmente por um ator, um artista teoricamente capacitado a ver além do que é permitido ver, a interpretar o invisível, a enxergar com o olhar da imaginação uma história pulsando num objeto corriqueiro e sem importância como um… como uma… uma garrafa vazia, por exemplo.
Um ator caminha na manhã recém nascida. Vê uma garrafa de cerveja, vazia, jogada junto ao meio-fio da calçada. Quem a jogou? Alguém que provavelmente bebeu muito à noite. Ou que bebeu apenas aquela cerveja? Bebeu divertindo-se, certamente. Ou será que estava triste? Solitário? Junto aos amigos? Um homem alto e gordo, talvez. Um homem franzino, possivelmente. Uma mulher? Bem… aí seriam outras hipotéticas histórias, porém com um leque maior de variações. Não! Melhor ficar no homem! Solitário e bêbado. Bebeu num bar enquanto observava os casais e os grupos de amigos nas mesas. Haviam outras pessoas solitárias como ele em algumas outras mesas. Pensou em como os solitários agrupam-se em lugares públicos para se observarem com discrição. Sorriu. Discrição é essencial para que os solitários mantenham intacta sua solidão, causa principal de estarem ali entre outros semelhantes. Sorriu e bebeu um longo gole de cerveja. O décimo ou vigéssimo? O bar iria fechar, Pediu mais uma garrafa de cerveja e saiu com ela na mão para beber enquanto caminhava.Estava indo para a sua casa? Talvez alguém o esperasse? Alguém preocupado ou contrariado? Estava indo para a casa da amante? Ou do amante? Iria praguejar ou cantar uma serenata sob a sua janela? Por que jogou a garrafa na rua? Não conhece as normas mais elementares de cidadania? Ou conhece e resolveu desrespeita-las? Sua ação foi proposital, teve uma intenção de rebeldia? O que ele pensava naquela hora da madrugada? Num amor perdido? Numa dívida financeira? Arrastava os passos? Tinha fome? Gordo e baixo? Que história move o nosso personagem noturno?
Bem, de alguma forma lá está a garrafa, impulsionada por alguém que se encontrava sob determinado estado de ânimo, motivado por uma intensa – sim : intensa! Caso contrário não serve! - ebulição emocional. Ou existencial? Ou espiritual?
Um ator, quando vê uma garrafa no chão, não vê apenas uma garrafa no chão.
Durante o período de ditadura militar sob o qual o Brasil viveu nas décadas de 60 e 80, falava-se em mais de quatrocentos textos de teatro retidos, ou melhor, proibidos e engavetados na sede do Departamento de Censura Federal. Oficialmente sabia a classe teatral que entre os textos proibidos estavam algumas obras primas, como “Calabar” de Chico Buarque e Rui Guerra e “Rasga Coração”, de Oduvaldo Viana Filho, esse último considerado por muitos teatrólogos e críticos ” e inclusive por esse humilde locutor aqui que vos fala - como a grande obra prima da dramaturgia nacional.
Muito bem : caiu o regime militar e acabou-se a censura, digo a censura estatal e ideológica porque a censura burocrática e financeira, ditada por mecanismos de mercado e interesses políticos, permanece aí até hoje, intacta, bela e faceira. O crítico Yan Michalski observa em seu livro “O Teatro Sob Pressão” que sempre que um regime autoritário assume o poder em qualquer sociedade e em qualquer período histórico, a primeira vítima é o teatro.
Os donos do poder proíbem indiscriminadamente textos e peças e costumam encarcerar, sem a menor cerimônia, dramaturgos e atores (Será que acreditam os tiranos que seja essa uma fórmula de aprisionar o pensamento criativo?)
A acusação, ou pretexto, gira sempre em torno da mesma ladainha : “tentativa de subverter a ordem estabelecida” e /ou, “atentar contra a moral vigente e os bons costumes”.
Michalski completa seu pensamento dizendo que essa intervenção do Estado é o maior elogio que se pode fazer ao teatro, pois reconhece implicitamente a sua importância social e cultural, sua condição de ” tribuna onde os problemas e as questões do ser humano são discutidos até às últimas conseqüências” , como queria Plínio Marcos.
Essencial, como queria Grotowisk, divertido para levar à reflexão, como propunha Brecht, poético e lancinante como os textos de Sheakespeare, dramático, militante, engraçado, trágico, farsesco, o teatro é um painel vivo que conta e registra a nossa atribulada aventura a bordo dessa bela pedra azul girando no espaço. Teatro, gente, é coisa séria!
Pois eu digo sem receio de errar que o teatro brasileiro vive hoje sob um clima de falso glamour e de vazio ideológico, existencial, espiritual e artístico absolutamente constrangedor.
Não. Não me refiro aos espetáculos que estão sendo atualmente encenados. Temos boas peças em cartaz e uma safra de novos diretores, atores e dramaturgos tremendamente promissora (Falo da praça aqui de São Paulo, minha cidade. Mas creio, pelas informações que obtenho, que a cena teatral esteja mais ou menos semelhante em outras cidades).
Estou me referindo ao “fazer teatral”, ao meio.
O palco transformou-se em passarela (o grande temor do tio Stanislavski, lembram?) de “celebridades”, socialites, bigues bróders, bailarinas, modelos, animadores de auditório, peladas da pleibói, ricos e ricas entediados, alpinistas sociais, anabolizados e siliconadas, enfim, uma fauna sedentária, desocupada, cafajeste e sem ter o que dizer e pra quem dizer.
Sujeito(a) teve lá os seus quinze segundos regulamentares de fama. Gostou do negócio. O empresário fareja uma possibilidade de ganhar mais algum aproveitando os resquícios de exposição na mídia que ainda tem o fulano ou a fulana e resolve investir em sua “carreira” .
Dá pra se ouvir o diálogo de longe :
-Sabe música?
-Não.
-Sabe tocar um instrumento, tigresa de íris cor-de-mel ?
-Não.
-Sabe cantar?
-Não.
-Sabe escrever?
-Não.
-Tem algum talento para Artes Plásticas?
-Plástica? Já fiz três e tô pensando em fazer mais uma.
-Bom… Tá difícil… Só tem um jeito : vais fazer teatro.
Esse fenômeno não teria a menor importância se fosse um fato isolado. Mas não é. A mídia, com ênfase para a televisão, é usina prodigiosa na produção de modismos, de trejeitos, de mitos fugazes e descartáveis. Bem, em algum lugar os restos dessa montanha de lixo cultural tem que ser depositados.
E o teatro, à custa de sua própria degradação, vai tornando-se o receptáculo ideal desse dejeto televisivo ou midiático.
Mais horrorizado fico quando percebo uma quase completa indiferença da classe teatral, das associações da classe e principalmente do sindicato da categoria, frente à esse quadro de degradação da profissão, do ofício teatral e do próprio Teatro.
Exagero? Paranóia? Teoria da conspiração? Sim, é possível, por que não? Mas uma breve passada de olhos pelas páginas dos cadernos de cultura da chamada grande imprensa, pode oferecer um panorama bastante emblemático do que foi acima exposto. O zelo pela integridade do teatro, pela sua função social é um exercício que nasceu junto com o próprio teatro. Uma espécie de defesa orgânica contra vírus e bactérias nocivas ao teatro.
A propósito de vírus e de bactérias, Antonin Artaud, à sua maneira singular, destacava essa preocupação no seu manifesto “O Teatro e a Peste” dizendo que não lhe parecia tanto que a defesa das Artes Cênicas fosse questão de “defender uma cultura cuja existência nunca salvou alguém de ter fome, mas extrair daquilo que se chama cultura idéias cuja força viva seja idêntica à da fome” (”O Teatro e seu Duplo” , editora Max Limonad).
Quem conhece, mesmo que superficialmente as idéias do autor de ” Les Cenci” sabe que ele não estava referindo-se à fome de projeção pessoal ou de fama instantânea. Muito, muitíssimo, pelo contrário.
Evoé!