Artigos Diversos

A Oficina do Cansaço

Um texto breve inspirado em um dia cheio de cansaços e desistências. Escrevo um pequeno fragmento subjetivo. Não estou a cronicar nada. Devaneio apenas sobre o fim de certas coisas, certos ciclos…. pessoas que vão embora sem dizer adeus, pessoas que dizem adeus por antecipação… E assim caminha o tempo, medroso de viver no seu tempo presente.

Os olhos vagam distraídos por uma superfície de tempo. Não sei mais o que pensar. Eu, personagem central de um tempo cronificado, balbucio histórias minhas e de outros. Histórias cansadas de existência. Meu personagem existe cansado. Mas não só ele. Quinta feira distante. Avistei um pequeno anjo. Com seus cabelos enroladinhos e suas vestes sérias, vinha ele tentar mostrar-nos coisas sobre o tempo, ditos a cerca da escrita do tempo. Era um anjo dado a escrituras. Das mangas curtas e azuis de sua camisa séria, pendiam braços finos com mãos delicadas e dedos longos. Deveriam ser mãos de escriba, deduzi. Mas seu olhar estava exaurido. Já não possuíam mais o brilho faiscante que eu havia conhecido tempos atrás. Em seu lugar, um vazio lúgubre e cansado. Entediado até. Com certeza queria ele esquecer o caminho daquelas terras e daquelas gentes que só lhe traziam lembranças estranhas.

Entretanto, conformado com sua batalha inglória, vi-o tentar explicar a escrita do tempo para certos seres distraídos. Não eram nem uma platéia. Não chegavam nem ao número de meia dúzia. Ninguém se interessa mais por assuntos menos vulgares. Idéia crônica. Assunto crônica. Cansaço crônico. Desesperança crônica. Desistência crônica. Silêncio crônico. E foi calado através de uma multidão de palavras que ouvi o último suspiro do anjo desencantado. Diante de olhares mudos, um leve sorriso de resignação. Logo mais a noite teria ele um novo martírio. Mais um falar, falar para ouvidos surdos de almas sonâmbulas. Certamente desejava que Cronos caminhasse mais rápido. Não, até o senhor do tempo parecia esgotado de suas forças. A vida seguia no modo retardado. Simplesmente cansado.

E foi assim que partiu, para nunca mais voltar. A crônica daquela Quinta feira distante não repousaria nem mesmo na memória daquele que se transformara de anjo escriba em espectro. A única escrita resultante daquela oficina fora o silêncio.

Quantas vidas o invisível abriga?

Final da década de 80. Mais uma das muitas greves dos operários metalúrgicos de São Paulo era o assunto do dia. Cobertura ampla nos jornais , revistas, rádios e televisão. O Brasil vivia um delicado momento de transição política. A ditadura chegava nos seus estertores e o estabelecimento de um governo civil, eleito pelas urnas, estava sendo negociada entre parlamentares e militares.

As greves iriam impedir que as negociações progredissem e, pior, inviabilizariam de vez um acordo entre militares e civis favorável à transição, diziam alguns. Já outros afirmavam que as greves iriam acirrar os debates e conduziriam à um estado democrático fortalecido, uma vez que conquistado pela pressão popular e não concedido através de um acordo político inconsistente.

De qualquer modo o assunto estava presente em todos os cantos do país e alcançava repercussão mundial. Um grupo de professores de teatro de uma conceituada escola paulistana, sugeriu aos alunos, que já cursavam o quarto e último ano do curso, a realização de uma série de work-shops de dramaturgia e interpretação que abordasse o tema da transição política e das greves. Surpresa : a quase totalidade dos alunos, próximos à sua formação de atores profissionais, não possuía um nível de informação sobre o tema que possibilitasse sequer iniciar o processo de trabalho. Conheciam bem Stanislaviski e seu trabalho frente ao Teatro de Moscou, as experiências de Grotowsky com seu Teatro Essencial, o teatro pictórico/imagético de Bob Wilson, conheciam todas as tendências da pop arte no mundo, debatiam Artaud, Wilhelm Reich, Lacan e o simbolismo junguiano. Só não sabiam do que acontecia no entorno de si próprios. Não tinham informações sobre o que ocorria em seu país. Desconheciam a própria cidade em que moravam.

Pode um ator não conhecer o seu próprio meio social? Como tratar de temas universais nesse caso? Pode um ator desconhecer a si mesmo? Como tratar sobre a existência humana então? Pode um ator ignorar a realidade que o cerca cotidianamente? Permanecer alheio à extrema algazarra da vida pulsando ao seu redor? Não se dar conta da imensurável força que brota infalivelmente todas as manhãs e que faz a roda da história girar?
Claro que conhecer e estudar Stanislaviski e os outros mestres e movimentos acima citados e os não citados é importante. Aliás, é mais do que importante : é fundamental na formação do ator.

Porém, um ator, ou em última análise qualquer artista, que não se apercebe do mundo que está cotidianamente ao seu redor, que não conhece sua gente, sua história, sua cultura e nem ao menos a sua própria cidade é algo que transcende ao absurdo.

É fato que o ator precisa sim estudar sempre, permanentemente. Já ouvi isso de diretores e de atores reconhecidamente talentosos. Deve ouvir, observar, ler, deixar-se impregnar de informações, como se fosse uma esponja. Não no sentido de buscar pura e simplesmente um status de erudição. Não somente na expectativa se vir a ser um analista político, um intelectual. Mas sim no sentido de embebedar-se de conhecimento. De todo e qualquer conhecimento. De alimentar e enriquecer constantemente seu repertório gestual, emocional e sensitivo, de tal modo que sua intuição ecoe sempre que necessário, sempre que despertada, junto à sua imaginação. A tão decantada imaginação prodigiosa do ator.

Para um artista que extrai seu mote de vida e sua arte da sua capacidade de observar, absorver e apreender o mundo e as gentes, isolar-se num mundinho particular confortável é a morte. Morte metafísica, claro, mas morte.

Convenhamos, no caso dos nossos candidatos a atores e atrizes aqui citados : algo acontecendo em uma cidade. Um acontecimento político/social de tal magnitude ao ponto de ter repercussão planetária, é um fato grande demais para não ser percebido.
Principalmente por quem vive e mora na tal cidade, no olho do furacão.

Principalmente por um ator, um artista teoricamente capacitado a ver além do que é permitido ver, a interpretar o invisível, a enxergar com o olhar da imaginação uma história pulsando num objeto corriqueiro e sem importância como um… como uma… uma garrafa vazia, por exemplo.

Um ator caminha na manhã recém nascida. Vê uma garrafa de cerveja, vazia, jogada junto ao meio-fio da calçada. Quem a jogou? Alguém que provavelmente bebeu muito à noite. Ou que bebeu apenas aquela cerveja? Bebeu divertindo-se, certamente. Ou será que estava triste? Solitário? Junto aos amigos? Um homem alto e gordo, talvez. Um homem franzino, possivelmente. Uma mulher? Bem… aí seriam outras hipotéticas histórias, porém com um leque maior de variações. Não! Melhor ficar no homem! Solitário e bêbado. Bebeu num bar enquanto observava os casais e os grupos de amigos nas mesas. Haviam outras pessoas solitárias como ele em algumas outras mesas. Pensou em como os solitários agrupam-se em lugares públicos para se observarem com discrição. Sorriu. Discrição é essencial para que os solitários mantenham intacta sua solidão, causa principal de estarem ali entre outros semelhantes. Sorriu e bebeu um longo gole de cerveja. O décimo ou vigéssimo? O bar iria fechar, Pediu mais uma garrafa de cerveja e saiu com ela na mão para beber enquanto caminhava.Estava indo para a sua casa? Talvez alguém o esperasse? Alguém preocupado ou contrariado? Estava indo para a casa da amante? Ou do amante? Iria praguejar ou cantar uma serenata sob a sua janela? Por que jogou a garrafa na rua? Não conhece as normas mais elementares de cidadania? Ou conhece e resolveu desrespeita-las? Sua ação foi proposital, teve uma intenção de rebeldia? O que ele pensava naquela hora da madrugada? Num amor perdido? Numa dívida financeira? Arrastava os passos? Tinha fome? Gordo e baixo? Que história move o nosso personagem noturno?

Bem, de alguma forma lá está a garrafa, impulsionada por alguém que se encontrava sob determinado estado de ânimo, motivado por uma intensa – sim : intensa! Caso contrário não serve! - ebulição emocional. Ou existencial? Ou espiritual?
Um ator, quando vê uma garrafa no chão, não vê apenas uma garrafa no chão.

Violência

De um ato de violência surge o quê? Um grito. Uma dor profunda e nauseante. E o sorriso da esperança. Parir é um ato de violência. Eis que surge a vida manifesta em sons de choro e promessas de porvir. Contraditório. Paradoxal. Fato.

Devaneio ainda sobre o que ouvi em longinguos dias atrás. Garcia-Roza: o ato de criação é um estupro! Sim. O ato em si de criar não é uma coisa bela, harmonica, delicada. É antes um estupro consumado. O calor que brota das entranhas do indivído que vomita… Não necessáriamente seus demônios, mas certamente os diabos de algum inferno próximo e circundante. O que é o ato de criação?! Deus sentiu dor quando pariu o universo? Van Gogh chorou desespero quando pintou seus tristes girassóis, Andrade calou enraivecido quando fez surgir Macunaíma… Não, que a dor que penso que sentiram é mais um prazer luxuriante do que um ferir de carne tenra… Todo estupro é antes de tudo um ato de prazer, um desejo ilícito consumado, o rompimento de uma regra… A criação é talvez a melhor forma de subversão da ordem, já que de sua desordem surge uma outra coisa ordenada… Paradoxal. Ilógico. Delirante.

O novo é violência porque está sempre em situação de tensão em relação ao que é velho. O drama é violência porque depende do choque de forças para fazer a ação caminhar. O artista é violência porque diz coisas que ninguém gostaria de ouvir. Ou pelo menos deveria. Sentir esse movimento de inquietação e desconforto diante de uma realidade ou uma situação. A entranha queimando, a víscera bradando que existe outro gesto, outro desejo… existe outra maneira de viver. O ato de criação é um estupro. Uma violência calculada para surgir escombros belos… e outras construções mais belas ainda… Ainda assim um ato de destruição… Até que ponto isso tudo é verdade. As vezes, a arte sorri cinicamente.

Para Ser um Ator Global, Teatral ou Universal

Lima Duarte, Mateus Natchergale, Antonio Caloni, Raul Cortez, Marco Nanini, Fernanda Montenegro, Cássia Kiss, Marisa Orth, Paulo Autran, Antonio Fagundes, Flávio Migliaccio, Paulo José, Rosi Campos, Othon Bastos, Regina Duarte, Marilia Pera, Stênio Garcia, Carlos Vereza,Yoná Magalhães, Marcos Caruso, Paulo Beti, Antonio Petrin…

A lista é extensa. Eu poderia ainda citar mais algumas dezenas, não fosse a preguiça de ficar aqui catando milho no teclado do PC nessa sexta feira ensolarada da Paulicéia, onde os dias ensolarados são raros.

Atores e Atrizes de primeiro time. Modestamente fui colega de curso de alguns e com outros tive a honra de estar em cena.

O que toda essa gente aí citada tem em comum? Tem que todos trabalham, trabalharam e irão trabalhar em novelas de tv.

"Novelas de tv", não! O que que é isso!!? Sejamos claros e objetivos : novelas da Rede Globo de televisão.

Claro que existe por trás desse elenco aí citado, um verdadeiro exército de canastrões e canastrãs inacreditáveis. De bunitinhos e bunitinhas sem sal, sem talento, sem pé nem cabeça.

Estão lá pra vender sabonete, perfume, roupas, cremes, carros, penicos, papel higiênico, ração de cachorro e toda sorte de bugigangas imagináveis. Faz parte. Ou melhor : é a parte principal da novela : o merchandising. A novela foi criada com essa primordial intenção, a de vender bugigangas. Pragmáticos históricamente, os americanos chamam as novelas de tv de soap-opera. Mais que um nome, uma definção precisa.

A história? O enrêdo?  Tanto faz que seja idiota, raso, primário, inconsistente, banal, infantilóide e ridiculamente resolvido com os casamentos entre mocinhos e mocinhas e a mortes dos inefáveis vilões. Alguns vilões sobrevivem ao final, mas são exemplarmente castigados por suas maldades e infâmias. Alguns subitamente tornam-se bonzinhos. O velho e funcional jogo maniqueísta do bem contra o mal. E com o triunfo do primeiro no último round. Quando termina uma novela a impressão que fica é a de que a vida estacionou num paraíso perene de bondades e felicidade. Fica a sençação de que a dor, o sofrimento, as angústias e a morte foram banidos da aventura humana dando lugar à uma espécie de Nirvana esquizofrênico de bem-estar e felicidade.

Aqui  um breve parênteses :

Já esbravejei aqui no Oficina de Teatro contra a ocupação indevida do nosso mercado de trabalho por gente que pouco ou nada tem a ver com a profissão de ator. E, enquanto o Chris permitir, vou continuar esbravejando. E todo profissional tem a obrigação de lutar pela preservação do seu mercado de trabalho. E, até que me convençam do contrário, vou continuar afirmando que se o teatro for contar apenas com as benesses governamentais vai viver à míngua.

Governo nenhum no Brasil em tempo algum jamais preocupou-se com a saúde, com a miséria da população, com  a educação e com a criminosa concentração de renda que nos faz campeões mundiais da
injustiça social. Resumo dessa minha tergiversação operística-barroca : se o "governo" (sic) não se ocupa do colossal tisunami miserável que varre o país, vai se ocupar com o teatro sabe quando? Acertou : nunca!

Fecha breve perênteses e voltamos à vaca fria das novelas.

Se um dia a Rede Globo de Televisão o convidar para atuar numa de suas novelas, faça-o sem culpas. Cumpra sua obrigação profissional : decore os textos, empenhe-se de corpo e alma na construção de seu personagem, utilize seus talentos e sua técnica em prol da realização de um trabalho consistente e digno de um verdadeiro ator, de um profissional competente. E cobre por isso, pois trata-se de sua profissão, de seu ganha-pão, de seu meio de vida. (Amigo meu, um belíssimo ator, vai participar da tele-novela "América". Perguntou-me o que eu achava. Disse-lhe exatamente o que está aí acima)

O elenco que citei no primeiro parágrafo dessas mal traçadas é exemplar, creio. São profissionais tarimbados e tem sensibilidade e talento suficiente para emprestar qualidade à qualquer espetáculo televisivo ou teatral. Nada mais atrozmente ridículo que um ator, iniciante ou não, torça o nariz para um trabalho que um Paulo Autram ou uma Fernanda Montenegro exercem com o empenho que a profissão e os deuses do teatro exigem.

O fato de pensar a profissão de ator como algo que transcende aos comuns mortais sempre me soou como uma rematada burrice. Sim, somos todos nós profundamente apaixonados pelo nosso ofício. Mais até : fazemos dele - o ofício - o nosso mote de vida. E no fundo acredito que se assim não o for, não tem a menor graça. Mas não somos "diferentes". Não somos especiais. Não estamos um ponto acima dos demais mortais. Nem nós, nem os músicos, nem os escritores e nem artista nenhum. Quem leu o Mestre Stanislawiski com o olhar da humildade e no intuito de adquirir conhecimento, sabe que ele pensava assim.

"Áh… mas então não devo recusar nem um trabalho que me agride moralmente, que eu discorde  ideológicamente, que eu considere estética e artísticamente uma porcaria?" Como dizia Plínio Marcos, "sua cabeça é o seu guia."

Confia em sua capacidade de discernimento, em sua sensibilidade, em sua inteligência, em suas antenas de artista  e bom trabalho, companheiro(a).

Ou melhor : Merda!!

A Morte e a Morte do Teatro

Frase recorrente na boca de profissionais das Artes Cênicas : o teatro está morrendo!

Morrendo onde? Na Europa? Nos EUA? Na Ásia? Na Groenlândia? Na China? No Nepal?

No Brasil atribui-se a "morte" do teatro à baixa frequência de público presente nos espetáculos em cartaz. Ora, e desde quando a frequência de público nos teatros tupiniquins teve um número capaz de ser qualificado como expressivo?

Proponho uma experiência : tente encontrar na Net ou na biblioteca de sua cidade ou escola, uma matéria sobre teatro numa revista ou jornal antigo. Da década de 50, por exemplo. Em seguida procure pelo o depoimento de algum ator, diretor ou produtor teatral.

Aposto uma rodada de Tequila que alguém estará reclamando da "ausência de público", da "falta de verbas" até finalmente proclamar a sentença apocalíptica : "O teatro está morrendo!"

Ou seja : a mais de meio século o teatro brasileiro "está morrendo". Que longa, interminável agonia!

Alías, afável leitorazinha, lembrei-me agora de um texto hilário do grande dramaturgo e comediante alemão Karl Valentim, que tinha entre seus discípulos o jovem Bertold Brecht. É um monólogo intitulado "Porque o Teatro Está Morrendo". Escrito, se não me falha a claudicante memória, na década de 30. Valentim tira um grande sarro propondo uma "solução" brilhante para resolver o problema da "morte" do teatro. Dá pra achar o texto na Net. E note que até na Europa, há mais de setenta anos anunciava-se a morte do teatro.

Uma manifestação de arte que nasceu com a civilização, que conta com pelo menos com três mil anos de idade não morre, não se dilui no ar assim sem mais nem menos. Até porque a necessidade da arte está irremediavelmente entranhada na alma humana. O homem -e a mulher, evidentemente - contemporâneo necessita do alimento espiritual que a arte lhe oferece tanto quanto o homem da idade média ou da Renascença.

Diz-se agora que a Tv representa a morte do teatro. Porque simplesmente "as pessoas" preferem ficar em casa vendo as patetices de um tal joão kleber ou  uma cretinice global qualquer.

Bem, subestimar a inteligência da população brasileira não altera em absolutamente nada a trágica realidade de nossa miséria cultural. Não nos move um milímetro sequer do topo do pódium dos países mais analfabetos do planeta.

Se alguém "prefere" alguma coisa é porque optou entre duas ou mais possibilidades. Não existindo a possibilidade de opção não pode haver o exercício democrático do cidadão preferir isso à aquilo.

Ninguém, aposto agora duas rodadas de Tequila, "prefere" ficar em casa vendo lixo. Ninguém "prefere" ficar sentado impassível na sala de sua casa vendo e ouvindo uma gente tosca e sem graça derramar impunemente asneiras e sandices de toda espécie em seus ouvidos.

Claro, admito sim que o "ninguém" a que me refiro abriga em seu meio uma boa dose de exceções. Fazer o que? Há quem goste de salada de giló, por exemplo.

Um livro que vende míseros cinco mil exemplares é considerado no Brasil um best-seller. Cinco mil exemplares numa terra em que habitam duzentas milhões de almas! Será que a literatura está morrendo também?

Ou será que é porque as escolas brasileiras, do ensino básico à faculdade,  não ensinam ninguém a ler? (aliás, reza a lenda que existem mais livrarias na cidade de Buenos Aires do que no Brasil todo. Torço para que não passe de lenda, mas não duvido).

Da mesma forma que Brasil não vai às livrarias porque não sabe ler, o Brasil não vai ao teatro porque não tem o hábito de ir ao teatro.

Porque, ao contrário do que ocorre nos países desenvolvidos, não se fala em teatro em nossas escolas, não se leêm textos dramatúrgicos em nossas escolas e nossos dramaturgos não constam dos currículos escolares. Porque não há estímulo e nem interesse em estimular o ensino de teatro nas nossas escolas. Porque nunca em nossa história houve a menor preocupação na formação de público. Público leitor, espectador de teatro ou consumidor de arte.

O Brasil, apesar da nossa enorme exubêrancia cultural, apesar de sermos um povo que possui uma abençoada vocação para as artes, é governado desde os primórdios de sua história por uma elite econômica e  política que desde sempre tem cagado e andado pra cultura, pras artes e pra educação. Acham, entre risinhos sarcásticos e armações de gabinete, que educação e cultura é " coisa de boiola".

Goebels, ministro da propaganda de Hitler, dizia que "quando ouço falar em cultura, puxo logo o meu revólver". Os nossos goebels, quando ouvem falar em cultura puxam logo a televisão. Nossos goebels são " melhores" que os deles.

De volta ao teatro, persistente e graciosa leitorinha.

Por vezes tenho a desconfortável sensação, quando vou ver um espetáculo, de que o público é o mesmo que vi no outro teatro a semana passada. Lá estamos nós, quarenta ou cinquenta pessoas, ou um pouco mais, quando a peça é de sucesso. Ficamos zanzando pelo pátio do teatro ou pela ante-sala, nos olhamos disfarçadamente, meio cabreiros, pensando "já vi esse cara…" "conheço essa garota…"  Às vezes até nos cumprimentamos com um leve aceno de cabeça ou um olhar. O espetáculo que antecede o espetáculo própriamente dito. Creio que mais algum tempo e seremos um grupo de bons amigos.

Ouvi um produtor de teatro afirmar durante uma conferência para a classe, que o número de pessoas  consumidoras/espectadoras de teatro em São Paulo esteja por volta de 150 a 200 mil. Adotando-se o critério de considerar como espectador alguém que vá ao ao teatro pelo menos uma vez por mês.  A Paulicéia Desvairada, com seus mais de doze milhões de habitantes, possui 200 mil que frequentam teatro. Porém, no entanto, contudo, temos agora, nesse exato momento em que cato milho no teclado do computador, 46 peças de teatro adulto e infantil em cartaz. Janeiro/fevereiro, baixa temporada, pouquíssimas estréias. Boa produção para pouco consumo.

 O teatro está morrendo? Pra ser sincero, eu até gostaria de achar que sim. Seria mais confortável. Apaziguaria meus demônios.

Creio que a origem da nossa angústia é mais simples e detectável do que parece. Apenas escolhemos escrever ou ser artistas num país em que arte e cultura é menos que nada. Um país onde uma pessoa morre de fome a cada dez minutos. Um país onde a vida humana vale infinitamente menos que a taxa selic, a taxa de juros, o sistema financeiro, o superávit da balança comercial, o déficit primário, a saúde do mercado financeiro, a rolagem da dívida da previdência, os números da Bolsa…

Ei! Espera aí! Que tal falarmos sobre esse estado de coisas em nossas músicas, em nossas peças, nossos filmes, nossas telas, nossas esculturas, nosso textos, nossos livros, nossos poemas… 

Lata de Lixo é a Vovozinha!

Durante o período de ditadura militar sob o qual o Brasil viveu nas décadas de 60 e 80, falava-se em mais de quatrocentos textos de teatro retidos, ou melhor, proibidos e engavetados na sede do Departamento de Censura Federal. Oficialmente sabia a classe teatral que entre os textos proibidos estavam algumas obras primas, como “Calabar” de Chico Buarque e Rui Guerra e “Rasga Coração”, de Oduvaldo Viana Filho, esse último considerado por muitos teatrólogos e críticos ” e inclusive por esse humilde locutor aqui que vos fala - como a grande obra prima da dramaturgia nacional.

Muito bem : caiu o regime militar e acabou-se a censura, digo a censura estatal e ideológica porque a censura burocrática e financeira, ditada por mecanismos de mercado e interesses políticos, permanece aí até hoje, intacta, bela e faceira. O crítico Yan Michalski observa em seu livro “O Teatro Sob Pressão” que sempre que um regime autoritário assume o poder em qualquer sociedade e em qualquer período histórico, a primeira vítima é o teatro.

Os donos do poder proíbem indiscriminadamente textos e peças e costumam encarcerar, sem a menor cerimônia, dramaturgos e atores (Será que acreditam os tiranos que seja essa uma fórmula de aprisionar o pensamento criativo?)

A acusação, ou pretexto, gira sempre em torno da mesma ladainha : “tentativa de subverter a ordem estabelecida” e /ou, “atentar contra a moral vigente e os bons costumes”.

Michalski completa seu pensamento dizendo que essa intervenção do Estado é o maior elogio que se pode fazer ao teatro, pois reconhece implicitamente a sua importância social e cultural, sua condição de ” tribuna onde os problemas e as questões do ser humano são discutidos até às últimas conseqüências” , como queria Plínio Marcos.

Essencial, como queria Grotowisk, divertido para levar à reflexão, como propunha Brecht, poético e lancinante como os textos de Sheakespeare, dramático, militante, engraçado, trágico, farsesco, o teatro é um painel vivo que conta e registra a nossa atribulada aventura a bordo dessa bela pedra azul girando no espaço. Teatro, gente, é coisa séria!

Pois eu digo sem receio de errar que o teatro brasileiro vive hoje sob um clima de falso glamour e de vazio ideológico, existencial, espiritual e artístico absolutamente constrangedor.

Não. Não me refiro aos espetáculos que estão sendo atualmente encenados. Temos boas peças em cartaz e uma safra de novos diretores, atores e dramaturgos tremendamente promissora (Falo da praça aqui de São Paulo, minha cidade. Mas creio, pelas informações que obtenho, que a cena teatral esteja mais ou menos semelhante em outras cidades).

Estou me referindo ao “fazer teatral”, ao meio.

O palco transformou-se em passarela (o grande temor do tio Stanislavski, lembram?) de “celebridades”, socialites, bigues bróders, bailarinas, modelos, animadores de auditório, peladas da pleibói, ricos e ricas entediados, alpinistas sociais, anabolizados e siliconadas, enfim, uma fauna sedentária, desocupada, cafajeste e sem ter o que dizer e pra quem dizer.

Sujeito(a) teve lá os seus quinze segundos regulamentares de fama. Gostou do negócio. O empresário fareja uma possibilidade de ganhar mais algum aproveitando os resquícios de exposição na mídia que ainda tem o fulano ou a fulana e resolve investir em sua “carreira” .
Dá pra se ouvir o diálogo de longe :

-Sabe música?
-Não.
-Sabe tocar um instrumento, tigresa de íris cor-de-mel ?
-Não.
-Sabe cantar?
-Não.
-Sabe escrever?
-Não.
-Tem algum talento para Artes Plásticas?
-Plástica? Já fiz três e tô pensando em fazer mais uma.
-Bom… Tá difícil… Só tem um jeito : vais fazer teatro.

Esse fenômeno não teria a menor importância se fosse um fato isolado. Mas não é. A mídia, com ênfase para a televisão, é usina prodigiosa na produção de modismos, de trejeitos, de mitos fugazes e descartáveis. Bem, em algum lugar os restos dessa montanha de lixo cultural tem que ser depositados.
E o teatro, à custa de sua própria degradação, vai tornando-se o receptáculo ideal desse dejeto televisivo ou midiático.

Mais horrorizado fico quando percebo uma quase completa indiferença da classe teatral, das associações da classe e principalmente do sindicato da categoria, frente à esse quadro de degradação da profissão, do ofício teatral e do próprio Teatro.
Exagero? Paranóia? Teoria da conspiração? Sim, é possível, por que não? Mas uma breve passada de olhos pelas páginas dos cadernos de cultura da chamada grande imprensa, pode oferecer um panorama bastante emblemático do que foi acima exposto. O zelo pela integridade do teatro, pela sua função social é um exercício que nasceu junto com o próprio teatro. Uma espécie de defesa orgânica contra vírus e bactérias nocivas ao teatro.
A propósito de vírus e de bactérias, Antonin Artaud, à sua maneira singular, destacava essa preocupação no seu manifesto “O Teatro e a Peste” dizendo que não lhe parecia tanto que a defesa das Artes Cênicas fosse questão de “defender uma cultura cuja existência nunca salvou alguém de ter fome, mas extrair daquilo que se chama cultura idéias cuja força viva seja idêntica à da fome” (”O Teatro e seu Duplo” , editora Max Limonad).

Quem conhece, mesmo que superficialmente as idéias do autor de ” Les Cenci” sabe que ele não estava referindo-se à fome de projeção pessoal ou de fama instantânea. Muito, muitíssimo, pelo contrário.
Evoé!